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Vetos - 141, de 8.5.1992 - 141, de 8.5.1992 Publicado no DOU de 11.5.1992 Projeto de Lei nº 42, de 1991, (nº 1.371/88 na Câmara dos Deputados), que "Proíbe a comercialização de medicamentos cuja fabricação ou venda foi interditada no país de origem".

Presidência da República
Casa Civil
Subchefia para Assuntos Jurídicos

MENSAGEM Nº 141, DE 8 DE MAIO DE 1992.

        Senhor Presidente do Senado Federal,

        Comunico a Vossa Excelência que, nos termos do parágrafo 1° do artigo 66 da Constituição Federal, decidi vetar integralmente, por considerá-lo contrário ao interesse público, o Projeto de Lei n° 42, de 1991, (n° 1.371/88 na Câmara dos Deputados), que "Proíbe a comercialização de medicamentos cuja fabricação ou venda foi interditada no país de origem".

        De fato, a legislação básica de vigilância sanitária de medicamentos no Brasil -- Lei n° 6.360, de 23 de setembro de 1976, regulamentada pelo Decreto n° 79.094, de 5 de janeiro de 1977 -- já contém claros e efetivos dispositivos, capazes de assegurar o impedimento da comercialização interna de produtos sem registro no Ministério da Saúde, como prescreve o art. 12 da referida lei, e no pais de origem, segundo seu art. 18, in verbis:

"Art. 18 O registro de drogas, medicamentos e insumos farmacêuticos de procedência estrangeira dependerá, além das condições, das exigências e dos procedimentos previstos nesta Lei e seu regulamento, da comprovação de que já é registrado no pais de origeem."

        Além disso, como medida de segurança sanitária e à vista de razões fundamentadas, o órgão de vigilância sanitária competente do Ministério da Saúde poderá, a qualquer momento, suspender a fabricação e venda de qualquer dos produtos submetidos ao regime do mencionado diploma legal, quando, mesmo registrado, se torne suspeito de ter efeitos nocivos à saúde humane (art. 7°).

        Tais mecanismos acauteladores da saúde ganharam substancial reforço na Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990, que "Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências". Seus artigos 10, 12 são do seguinte teor:

"Art. 10 O fornecedor não poderá colocar no mercado de consumo produto ou serviço que sabe ou deveria saber apresentar alto grau de nocividade ou periculosidade à saúde ou segurança."

"Art. 12 O fabricante, o produtor, o construtor nacional ou estrangeiro, e o importador, respondem independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes do projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização

e risco."

        Adicionalmente, seu art. 56 estipula severas penalidades para os infratores dessas e de outras normas do Código de Proteção e Defesa do Consumidor.

        Com essas defesas legais, portanto, torna-se dispensável a obrigatoriedade prescrita na proposição ora vetada, levando-se em conta ainda que ao Brasil, como a qualquer outro pais deve ser reservada suficiente autonomia, cientifica e técnica, para decidir quanto à utilização de medicamentos -- de natureza tanto terapêutica quanto preventiva ou diagnóstica -- já que, para essa decisão, se tem de avaliar, na maioria dos casos, os aspectos diferenciados da etnofarmacologia, da estrutura da morbidade, das prioridades de saúde pública e de uma série de outros parâmetros, determinantes dos perfis adequados da prescrição e do uso de medicamentos em cada país.

        Mas há, também, grave conotação de natureza criminal. Isso porque a cominação contida na proposta, das penas do art. 132 do Código Penal -- que enuncia o crime de perigo para vida ou saúde de outrem -- para a prática de importação ou comercialização de medicamente proibido no país de origem representa, sem embargo dos louváveis propósitos da iniciativa abstração temerária de certos postulados da teoria penal.

        A disposição, se aceita, conduziria ao equivoco de apontar conduta criminosa àquele que vende medicamento licitamente veiculado no Brasil, mas repentinamente desautorizado no país de origem. Dessarte, se, por exemplo, determinado produto norte-americano tivesse sua fabricação desaprovada pelo Food and Drug Administration -- órgão de fiscalização de produto farmacêuticos e alimentícios nos Estados Unidos --, a partir do instante em que proibido o remédio no pais de origem, o farmacêutico, aqui no Brasil, estaria cometendo crime: clara hipótese de responsabilidade penal objetiva, repudiada, salvo naqueles casos peculiaríssimos como os da actio libera In causa, pela moderna teoria da culpabilidade.

        Os reflexos disto -- inclusive no campo constitucional -- fazem-se imediatamente notar, como ressalta Francesco Palazzo (in "Valores Constitucionais e Direito Penal", SAF, 1.989, págs. 52-53), com base em Kaufmann, Maurach, Bettiol e outros:

"Esquematicamente, pode-se dizer que a "virtude" constitucional do principio da culpabilidade é dúplice, inscrevendo-se ora como fundamento da pena e do próprio jus puniendi, ora como limite da intervenção punitiva do Estado. Admitir o principio de culpabilidade como fundamento da pena significa emprestar a esta caracteres retributivos compensadores do mal produzido pelo autor, na medida em que esse mal reflete a cattiva volontà do réu. A culpabilidade, como fundamento da pena, projeta o sistema penal numa perspectiva eticizante, no centro da qual está o homem, como sujeito de responsabilidade moral, entendido, pois, em sua característica capacidade de auto-determinação, para o "mal" e para o "bem". Em tal acepção, o princípio de culpabilidade faz penetrar suas raízes constitucionais no super-ordenado princípio da intangibilidade da dignidade humana: o seu fundamento constitucional pode dizer-se, então, substancial-personalístico."

        Certo que o comentário é feito à luz da Constituição italiana, cujo art. 27 diz que a responsabilidade penal é pessoal e que as penas devem tender à reeducação do condenado. Não menos certo, porém, é que, segundo o art. 59 do Código Penal Brasileiro, ao juiz compete fixar a pena atendendo à culpabilidade do agente, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime -- e Celso Delmanto (in Código Penal Comentado, 3ª edição, pág. 88) vê, neste dispositivo-legal, a satisfação do princípio constitucional da individualização da pena, ventilado no art. 5°, XLVI.

        Se, entretanto, a ótica do pretenso aplicador da lei fosse, como proclama o art. 132, estimar criminosa tão-só a conduta dolosa, de comercializar ou importar medicamento proibido na origem, nesse caso a existência de elemento, no tipo, de difícil conhecimento -- a "fabricação ou venda vedada na origem" – conspiraria inexoravelmente contra a aplicabilidade, na prática, do tipo criado. É precisa, nesse rumo, a lição do grande Hungria (in Comentários ao Código Penal, volume 1, tomo 1°, Forense, 3ª edição, págs. 13-14):

"Dizia justamente GIERKIE que "o fundamento da regra ignorantia juris nocet é menos a ficção do conhecimento geral da lei do que o raciocínio de que na lei é apenas expresso o que já existe ou deve existir na consciência jurídica de cada indivíduo". Mas a gênese social ou pré-legal dos deveres jurídicos não afasta a necessidade de traçar um limite aos mandatários do Estado na aplicação da justiça penal. Antes da seleção legal (normativa) dos fatos lesivos do mínimo ético que o direito penal tutela, não se pode impor coativamente, sub poena, quanto a eles, um dever jurídico de abstenção. A supressão do princípio da legalidade subverteria a própria noção de culpabilidade, que não pode existir sem a consciência da violação do dever jurídico, ou possibilidade dessa consciência."

        A consciência da ilicitude fica sempre sacrificada à consideração de que a proscrição do medicamento ocorre alhures, e não por força, por exemplo, de ato próprio ao órgão da vigilância sanitária ou ao Ministério da Saúde, Como crer plausível a existência da noção da ilicitude, se não há, por parte do Estado brasileiro, uma "seleção normativa" -- como diz Hungria -do objeto proscrito?

        A única forma, portanto, de anuir à existência de semelhante tipo seria criá-lo sob a forma de norma penal em branco. "Denominam-se normas penais em branco" -- leciona Francisco de Assis Toledo, nos seus Princípios Básicos, págs. 42-43 -- "aquelas que estabelecem a cominação penal, ou seja, a sanção penal, mas remetem a complementarão da descrição da conduta proibitiva para outras normas legais, regulamentares ou administrativas". (Grifo não do original.)

        Não é, evidentemente, o caso: a remessa ao Executivo, como faz o art. 5°, não supre o vicio do próprio enunciado do tipo, que deveria, por si mesmo, anunciar a complementação.

        Ocioso lembrar que em branco é a norma, não a interpretação do texto em sua inteireza: ao comentar os desdobramentos do princípio da legalidade, Toledo anota (obra citada, pág. 29):

        A exigência de lei certa diz com a clareza dos tipos, que não devem deixar margens a dúvidas nem abusar do emprego de normas muito gerais ou tipos incriminadores genéricos, vazios."

        Por tudo isso e porque, se aprovada, a propositura viria configurar, como demonstrei, uma situação de paralelismo legal, tenho-a como contrária ao interesse público.

        Estas, Senhor Presidente, as razões que me levaram a vetar totalmente o projeto em causa, as quais ora submeto à elevada apreciação dos Senhores Membros do Congresso Nacional.

Brasília, 8 de maio de 1992.

Este texto não substitui o publicado no D.O.U. de 11.5.1992


Conteudo atualizado em 19/04/2024